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O diabo vai chegar numa Brasília verde
Quando eu estava na terceira série, a professora de educação artística mandou a classe dividir-se em três grupos de doze alunos pra fazer uma apresentação de teatro pra feira do livro, que acontecia em todos os meses de agosto, naquela tradicional escola do Morumbi, bairro nobre de São Paulo, na qual eu era bolsista por ser filho de professora. A mim coube, além da função de escrever a peça, interpretar o personagem principal: um guitarrista esquizofrênico que conservava o hábito de apedrejar igrejas nas madrugadas de lua cheia.

Caraca, véio, o que é que eu queria arrumar pra minha cabeça ao dar-me este polêmico personagem?

Eu somente seria expulso daquele lauto colégio três anos mais tarde, no meio da sexta série, ao falar pro professor Antônio, de história, que compreendia bem a origem símia do homem assistindo às aulas de geografia. Ele era marido da professora de geografia.

Contudo já deixava a situação bem feia pro meu lado ao acumular problemas que carregaria nas costas por todos os anos que lá permaneceria. Como se não bastasse o bullying sofrido por chegar todos os dias na escola numa Brasília verde 78, enquanto os coleguinhas iam de Del Reis, Santanas, Monzas e Escorts do ano, naquele segundo tempo da década de oitenta, eu ainda escolhia os caminhos mais difíceis pra caminhar pelos meus já esgotados anos perdidos da minha finada (UFA!) tenra infância.

Qualquer semelhança com os dias atuais da minha vida é mera coincidência. Nunca fui muito hábil pra decidir como me comportar. A partir de então, além de ser o pobre, filho da tia da Brasília verde, eu também era herege, abominável e escrotinho.

Uma semana e meia após a dramaturgia, fui almoçar no refeitório do colégio (estudava em período integral).

Peguei o bandejão, servi-me de suco, bife, batata frita e sobremesa, dispensando os gosmentos feijão e arroz, e sentei-me junto às demais crianças.

Não foi surpresa nenhuma ver a menina da cadeira vizinha levantando-se e mudando-se de lugar. Isso acontecia sempre. Eu só não esperava que a professora, que observava tudo à distância, interviria, tentando impedir que a Nicole concluísse o seu ato escancarado de discriminação explícita.

– Perto desse filho do diabo eu não sento, tia. Eu rezo todas as noites pra ele morrer – esclareceu convincentemente a amável coleguinha.

Estava justificadíssimo!

A professora olhou pra mim, olhou pras crianças, alimentou uma fisionomia de dúvida por alguns instantes, abriu a boca e elevou o dedo indicador em riste como se fosse dizer algo semelhante a um discurso de um Martin Luther King que defende os brancos pobres que vão pra escola numa Brasília verde e interpretam esquizofrênicos que apedrejam igrejas, entretanto… baixou o dedo, arriou os olhos e disse:

– Tá bom, Nicole.

No domingo seguinte, fui à igreja com a minha avó, que era uma católica fervorosa.

Vi uma velhinha ajoelhando-se na frente da imagem de uma santa e fazendo uma promessa.

Aí, pensei: "Será que esse negócio dá certo mesmo?".

Olhei pra cara da santa e decidi fazer a minha promessa também, mas não fui com a cara dela. Também não gostei da imagem do santo do lado... Tinha uma cara de bocó...

Achei melhor procurar um santo que tivesse mais a ver comigo. Como eu usava óculos, fui atrás de um santo de óculos. Não encontrei nenhum e voltei pra casa cabisbaixo.

Senti-me tão decepcionado que não tive nem vontade de ir à escola no dia seguinte. Fingi que estava doente e fiquei em casa.

Em plena segunda-feira de manhã, eu estava livre daquele inferno e podia fazer o que bem entendesse.

Liguei a televisão...

"Alô, criançada, o Bozo chegou trazendo alegria pra você e o vovô! Estamos trazendo muito amor. Um, dois, três e... vamos lá! Eu sou um palhaço, meu nome é Bozo. Bozo, Bozo, vamos brincar! Sempre rindo, eu e você! Suas risadas são tão legais! Ninguém rindo igual a mim! Eu sou o Bozo, o palhaço de todos vocês!"

Ah! Com esse, sim, eu me identifico! Nesse cara, sim, dá pra confiar! Ele não se leva a sério e nem tem cara de falso moralista.

Dobrei os meus joelhos na frente do aparelho televisor e...

– Oh, Bozo, dá um jeito da situação melhorar pra mim que, quando eu fizer dezoito anos, faço uma tatuagem em sua homenagem.

E, no dia seguinte, saí de casa todo confiante. Quem diria? Eu indo pra escola todo feliz, crente que o Bozo resolveria tudo. Estava tão cheio de mim que nem me escondi. Coloquei a cabecinha pra fora da Brasília da minha mãe e deixei todo mundo me ver.

Cinco minutos depois, chegou a Nicole, todavia, diferentemente do que ocorria de costume, não era o pai dela que dirigia o Diplomata, era a mãe.

E mãe e filha estavam bastante tristes...

Logo, o colégio inteiro soube que o pai da Nicole sofrera um acidente de carro: bateu de frente com uma Brasília e teve que amputar uma perna.

– Oh, louco, Bozo! Também não precisava tanto...

A aparência daquele palhaço bonzinho não era sinistra por acaso...

Se bem que, olhando por um certo ângulo, até que seria bom pra Nicole. A patricinha que idolatrava tanto as marcas de playboy dos anos oitenta – OP, Nike, Fórum, Hang Loose, Pakalolo... – a partir de então teria a oportunidade de aproximar-se do folclore brasileiro: Saci Pererê.

Não tive coragem de pedir mais nada pro Bozo, mas temia o cara pra caramba...

O meu lado humanista fez que eu lamuriasse baixinho:

– Puxa vida, Bozo... podia ter deixado a perna do pai da menina...

O tempo passou e, enfim, eu fiz dezoito anos. O Bozo, eu não quis tatuar não... Deus me livre e guarde... mas também não tive coragem de descumprir a promessa... Sabia do que aquela coisa medonha do capeta era capaz... Ainda mais depois que ele confessou que curtia uma cocaína. Seu nariz não era vermelho por acaso e também estava explicada a cara branca.

Então, pra ficar tudo certo e em paz, eu tatuei o Pica-Pau, que estava sempre presente nos programas do Bozo, podia ser vingativo e cruel, porém não perdia a espirituosidade.

Mingau Ácido (Marcelo Garbine)

Texto publicado na Revista Literária da Lusofonia – Décima Sexta Edição – outubro de 2015 – Páginas 97 e 98.

A versão em áudio deste texto – transmitida pela Rádio WRA de Santo André – SP – e pela Rádio Além Fronteiras de Portugal – pode ser ouvida na subseção Crônicas para Rádio da Seção Rádios deste site.

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