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O taxista que era filho de uma quenga
Depois de alguns minutos, em frente ao Teatro Municipal, o táxi parou e eu abri a porta. Pensei que não houvesse mais Fuscas sendo utilizados como táxis, em pleno ano 2007. Senti algo esquisito na fisionomia daquele motorista. Eu estou atrasado para a palestra e não posso dar-me o luxo de escolher muito. Entrei no veículo mesmo assim. Aquele bigodinho fino acompanhado de um sorriso insuportavelmente sarcástico de quem pensa que o mundo inteiro é otário e só ele é esperto não estava descendo pela minha goela. Não entendia porque aquele cara não parava de revezar o olhar entre o trânsito e a minha direção. Seu globo ocular não parava quieto, parecia um sono R. E. M., só que com os olhos abertos. Eu tentava permanecer concentrado na leitura do livro, mas aqueles olhos ficavam, vez por outra, fitando-me, como se quisesse pescar alguma coisa.

– Que livro é esse aí na sua mão?

– O Segredo.

– Ah, esse aí que é aquele livro que promete sucesso e dinheiro para pessoas fracassadas?

– Cada um olha as coisas pelo ângulo pelo qual lhe é mais familiar…

– Você conhece alguém que ficou rico lendo esse negócio aí?

– De certo modo, sim.

– Ah, então ele guardou muito bem esse segredo, não é?

Meu Deus, esse homem deve sofrer, parcialmente, de paralisia facial. Ele só sorri com um dos cantos da boca… – pensei.

– Senhor taxista, pode dar-me um cartão seu? Quero sempre usufruir dos préstimos de um profissional bem sucedido.

O “sincero-man”, uma espécie de versão maligna de Jorge Kajuru, rasgou a ponta de um pedaço de um exemplar da semana passada do Metrô News – jornal de distribuição gratuita de São Paulo – rabiscou uns garranchos e estendeu para mim.

– Vitório Bom Sucesso?

– É o meu nome.

– É por isso que o senhor despreza tanto esse livro… com um nome desse, quem precisa?

– Esse seu livro é excelente para ficar rico. Os autores ganharam bastante dinheiro com ele.

– Algumas pessoas da minha família também.

– Você tem família?

– Ué! Por que a surpresa?

– Pela sua cara de infeliz, achei que não tivesse.

O trânsito de São Paulo estava aquela maravilha de sempre. E eu, morrendo de vontade de fazer o que mais ninguém pode fazer por mim…

– Senhor Bom Sucesso, eu preciso tirar água do meu joelho, vou aproveitar que está tudo parado e ir naquele jardinzinho ali.

– Vai lá, meu caro, porque por mais que seja grande a sua força de vontade, o universo não trará um banheiro até você.

Comecei a forçar o trinco da porta do Fusca, que parecia emperrada.

– Vai! Com força e pra cima!

– É isso aí, senhor Bom Sucesso!

– Ahahahaha… não se empolgue, moço. Estou referindo-me ao trinco. Você está mesmo fissurado nesse livro. Que dó de você…

Fica difícil concentrar-se numa atividade tão natural para o ser humano, quando alguns engraçadinhos, que estão parados no trânsito, querem divertir-se às suas custas, gritando da janela do carro, se você pretende que naquele jardim nasça um pé de erva mate quente, pronto para beber, tendo em vista a temperatura da água com a qual as plantas estão sendo regadas. Ah, vai pro inferno!

– Pronto, seu Vitório, toca o barco.

– Pra falar a verdade, até que eu acho os livros de autoajuda uma boa. De repente, se a pessoa não tem dinheiro pra pagar uma psicóloga e não tem com quem conversar… a autoajuda pode estar ajudando.

– Eu li alguns livros que ensinam a arte de enriquecer e consegui amealhar cem mil reais, em dois anos, aplicando na bolsa de valores.

– Ah, isso funciona mesmo. Sempre que a minha mulher enche o meu saco, dizendo que está com dor de cabeça, eu dou uma pílula de farinha pra ela e ela fala que está bem melhor.

– Geralmente, as coisas estão na frente do nosso nariz e não a percebemos. Alguns profissionais escrevem livros para ajudar-nos a ver isso.

– Está certo. Sua riqueza existe, mas está no mundo espiritual, por enquanto. É isso que os autores do livro ajudaram você a perceber?

– Há muito o que se refletir sobre suas palavras, seu Vitório. Vou pensar nisso, hoje, enquanto estiver tomando banho.

– Você toma banho?

– Hoje, eu pretendo, se conseguir chegar em casa antes das dez da noite porque estou morrendo de sono.

– Está certo, meu filho, de vez em quando é bom…

– Como assim de vez em quando?

– Não tente tapar o sol com a peneira, rapaz. Fica tranquilo, você está mostrando-se coerente. Ficar um tempo sem tomar banho é uma boa técnica. Você deve se sentir importante quando, enfim, toma.

– O tempo é muito escasso: ou eu limpo a minha casa ou eu tomo banho.

– É um problema fácil de resolver: como você tem cara de quem vive em marte, deve ficar pensando na morte da bezerra e demorar no banho. Então, é só deixar a porta do seu banheiro aberta. O vapor do chuveiro não vai deixar a sua casa brilhando, mas vai dar uma boa limpadela. Como eu suponho que a sua casa deva ser pequena, o vapor vai abranger todos os cômodos. Melhor do que nada pra quem vive no chiqueiro.

– Eu já faço isso. Tomo, sempre, banho com a porta aberta.

– porque está quebrada. Eu aposto.

– Senhor Vitório, eu vou descer aqui mesmo. Foi um prazer conhecê-lo.

– O prazer foi todo meu, amigo.

– Ops, desculpe-me por ter pego na sua mão, esqueci da paradinha que o senhor deu pra mim.

– Não é uma falha difícil de se perdoar, se eu pensar que também não devia estar cumprimentando você.

Ao lado do câmbio, pude ver uma revista pornográfica da década de 60.

– Como o senhor faz para não imaginar que essas mulheres já são avós?

– Uma bela mulher será sempre uma bela mulher.

– Principalmente quando congelada em uma imagem de fotografia, senhor Bom Sucesso.

– Ei, não diga isso. Elas merecem respeito. Como você mesmo lembrou, são senhoras, mães de família.

– Com filhos que dirigem táxi.

Mingau Ácido (Marcelo Garbine)

A versão em animação digital pode ser vista na seção Desenhos Animados deste site.

A versão em áudio deste texto – transmitida pela Rádio Além Fronteiras de Portugal e pela Rádio WRA de Santo André – SP – e pela Rádio Além Fronteiras de Portugal – pode ser ouvida na subseção Crônicas para Rádio da Seção Rádios deste site.

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Ilustração de Nanci Penna

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