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Cheguei ao cume do sucesso!
Eu sempre quis morar numa casa em que eu pudesse ouvir os passarinhos cantando, pela manhã, mas eu nunca imaginei que fosse ficar com ódio desses desgraçados. Eu só queria dormir mais meia hora, só isso. Vai cantar alto desse jeito no raio que o parta. Os primeiros raios de sol entram pela fresta da janela do meu quarto e eu me recordo do sonho que tive nessa noite. Sonhei que o Mingau Ácido fazia muito sucesso. Eu usava traje de alpinista e galgava uma montanha. Enquanto subia, uma torcida de milhões de pessoas, que desafiavam o sol, correndo o risco de prejudicarem as próprias vistas, olhavam para o alto, viam-me vencer cada centímetro quadrado daquela montanha escorregadia e gritavam: “Mingau! Mingau! Mingau!” Eu chegava ao ponto mais alto da montanha, que também é chamado de cume, e levantava os braços. Esse simples movimento já era o suficiente para levar a multidão ao delírio. Todos olhavam para cima e viam-me no cume da montanha.

Sonhos todos temos… o que muitas vezes nos falta é fôlego para correr atrás. O solavanco das ironias com as quais nos defrontamos pelo caminho chacoalha demais, principalmente porque não somos um só. Uma parte da gente sempre quer uma coisa enquanto a outra parte quer outra. Eu, como poeta, sempre quis acordar às seis horas da manhã, ao canto maravilhoso desses pássaros, olhar nos olhos do meu amor, durante o café da manhã, e compor mais uma bela poesia, em todos os nasceres de sol… mas o lazarento do Mingau Ácido só quer dormir mais meia hora. Assim fica difícil correr atrás dos sonhos.

Sinto-me molhado… Mijando na cama nessa idade, Mingau? Não, eu não mijei na cama. Isso é sangue proveniente do meu fiofó. Eu estou com um problema de hemorróida e um consequente sangramento anal. Bela forma de pôr fim aos meus devaneios esquizofrênicos. Vamos ao médico, então…

Fiquei com vergonha de falar, durante a triagem, que eu estava “conversando com o chinesinho”, o “Ku Shai Shang”. Logo estava eu na sala de uma linda médica, recém-formada.

– Doutora, eu disse para a enfermeira que estava com dor de cabeça porque me senti constrangido…

Ela arregalou os belos olhos verdes e fingiu estupefação para consolar-me, mas, no fundo, ela só queria que eu continuasse falando para divertir-se com a minha desgraça. Li o livro “O Corpo Fala” de Pierre Weil e Roland Tompakow. A boca da jovem médica abriu-se para sincronizar com os olhos. A moça escolheu a profissão certa, era uma péssima atriz. Sua fisionomia exalava sorriso sarcástico.

– Eu posso examinar você?

– Pode, né…

Deitei de bruços, na maca, conformado, achando que esse era o auge da humilhação que eu teria de passar naquele dia. Doce ilusão…

– Você se incomoda se eu chamar a minha colega para que ela me ajude a examinar você?

Ela tomou o meu silêncio como um sim…

A sensação de ser o protagonista de um circo de aberrações não acabou por aí. Ainda havia o encaminhamento para o proctologista… De novo, de bruços, na maca… que merda…

– Tudo bem, Marcelo, pode erguer a calça e sentar-se à minha mesa. Quantos anos você tem?

– Trinta e sete.

– Casado ou solteiro?

– Solteiro.

O médico levou a mão fechada à boca e pigarreou.

– Eu sou macho, doutor, se é isso que o senhor quer saber.

– Ah, tá.

– Posso ir embora?

– Eu interrogo o paciente dessa forma para ser sutil. Chega-se à conclusão pelas evidências.

– A minha resposta não serve de base para evidência nenhuma, doutor. Eu sou um “bon vivant”. Graças ao fato de ser solteiro e não ter filhos, pude passar o fim de tarde dessa segunda-feira brava jogando boliche. E, por falar em evidência, quem é o senhor para falar alguma coisa? Olha esse adesivo do Village People estampando a sua agenda. Que coisa linda…

– Para com isso, eu uso barba. Já viu viado com barba?

– O pior que já. Hoje mesmo, na saída do boliche, havia vários travestis com barba. Era uma visão do inferno. Um gritando “aê, mano!” para o outro, do outro lado da rua.

– Pediu o seu dinheiro de volta?

Deixa pra lá. A minha situação coloca-me em desvantagem. Quem vai levar a sério um homem que expele sangue pelo rabo?

Vou pra minha casa dormir. E, quem sabe, continuar o sonho de sucesso da noite anterior. De uma certa forma, já consegui realizar uma parte do meu sonho: Todos, no cume, olhavam…

Mingau Ácido (Marcelo Garbine)

A versão em áudio deste texto – transmitida pela Rádio WRA de Santo André – SP – e pela Rádio Além Fronteiras de Portugal – pode ser ouvida na subseção Crônicas para Rádio da Seção Rádios deste site.

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Ilustração de Nanci Penna

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