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O homem que virou fezes
Depois de assistir ao filme “O Albergue” (Hostel para os portugas), produzido por Quentin Tarantino, comentei com um colega de trabalho que achava impossível uma organização de pessoas que torturam e matam por prazer existir da forma como é hiperbolicamente exibido no filme. “Ah… não sei, cara. Existe louco pra tudo” – ele falou. Mas não é uma questão de haver, ou não, no mundo, pessoas capazes desse tipo de atrocidade. Eu sei muito bem que tudo o que você imaginar, existe. Se algum dia, você estiver reflexivo, no conforto de seu lar, assombrado pela dúvida acerca da existência de alguma preferência excêntrica e funesta, em algum lugar do planeta, eu dou aqui uma ajudinha e tiro, de modo prévio, a sua dolorosa dúvida: “Sim, existe. Tudo existe”. Eu considerei a impossibilidade por conta da estrutura pormenorizada daquela confraria, em meio a um mundo que só se mantém em funcionamento por causa das regras morais implícitas e leis formais – nascidas no âmago de alguns seres humanos ou somente para manter as aparências – que conseguem fazer com que não matemos uns aos outros ou cometamos outros tipos de malvadezas piores. Não restam dúvidas de que aquele médico indicado por pessoas da sua confiança, o simpático homem que toma café na padaria todos os dias no mesmo horário e o amigo engraçado da repartição que vive contando piadas, na mesa ao lado, enquanto faz seu serviço burocrático com presteza, podem estar arquitetando planos malévolos para realizá-los no momento oportuno, assim que findar o expediente e estiverem fora do radar dos olhos da sociedade bem comportada. Mesmo que, entre uma desumanidade e outra, persista o afago na cabeça do filho de sete anos, seguido de um sorriso e um moralista conselho paterno, os porões da amorosa residência guardam o escravo sexual mantido acorrentado em cárcere privado. Os gestos mais explícitos e sumariamente condenados por todos os extratos da pirâmide são ocultados, mas pequenas pontas do lençol de extravagâncias desvirtuadas ficam à mostra e deixam rastros do que realmente somos – como indivíduos únicos, por menos que admitamos. Esses rastros não são tão reprováveis assim pelo senso crítico coletivo, pois não colocam a mão na massa para realizar os atos atrozes, apenas vislumbram as atrocidades já prontas e deleitam-se. Querem um exemplo? Os circos de aberrações do século XIX que vemos nos filmes. Afinal, não fui eu quem projetou geneticamente a mulher barbada, não tenho culpa que a natureza fez nascer anões gêmeos siameses e nem que os caprichos dos cromossomos insanos de um homem e de uma mulher, que faziam sexo empolgadamente irresponsável, se uniram com tanta ênfase, para formar o insólito Homem-Fezes! Homem-Fezes? Sim. Apresentava-se no circo de aberrações um homem normal como todos os outros, com um pequeno diferencial: ele sofria uma metamorfose involuntária que o fazia se transformar em um nauseante exemplar de fezes. Chamei de pequeno diferencial não para recorrer ao meu usual sarcasmo. Podem acreditar, eu falei literalmente dessa vez. Não é uma diferença tão grande assim, se levarmos em consideração que podemos, eventualmente, nos sentir um homem-fezes, com letras minúsculas, porque não somos tão explícitos quanto a celebridade do circo. Eu, por um casual exemplo, sempre me senti incompreendido pelos colegas da repartição pública ou da época da pré-escola. Não havia um instrumento à mão para que eu pudesse gritar quem eu sou: EU SOU O… EU SOU… EU SOU… deixa pra lá… Mas, com o avançar dos dias vividos, descobri essa codificação milenar e passei a utilizá-la. Fiz valer a sua vantagem de possibilitar a materialização de um raciocínio sem precisar estar ao vivo, e de frente, para o interlocutor, sem a alternativa de retroceder, recalcular, apagar, refazer sem que saibam que foi refeito, sem precisar mostrar a expressão facial tímida e desconcertada e o tom de voz inseguro e titubeante, por vezes até gaguejante, que somados correspondem a 93% do que expressamos. Ta aqui os parcos 7% que restam na raspa do tacho, cravados nesse sulfite dos tempos modernos. É nele que eu vomito toda a informação mal digerida que eu capto por aí. E quando eu penso que eu aliviei o meu bucho de suíno, percebo que não existe nenhum vagante que se desloca sobre as duas patas superiores disposto a dar a mínima pelo surrado papel com rabiscos letriformes. Engoli-lo-ei ou, mais civilizadamente, guardá-lo-ei nos confins de uma poeirenta gaveta de criado-mudo. Até que um dia desses, num desses encontros casuais, deparo-me com um punhado de malucos, bem-sucedidos profissionalmente, que acharam um meio de expressar tudo aquilo que sentem vontade e que não é permitido pelo contrato social formalizado na rotina de suas labutas de homo habilis que advieram ao mundo na leva da criativamente denominada geração X: uma botelha contendo líquido de embriagar, um chouriço de carne de porco e uma forma lexical apocopada daquilo que as mulheres da vida fazem nas preliminares da penetração, encabeçados por uma ave palmípede, que me estendeu a asa. Fui acolhido no seio do grupo de rebeldes que, por seus turnos, foram aceitos pelo seletivo agrupamento que tanto preza pelo palato estético, que nem sempre é o convencional. Até mesmo figuras pitorescas como o finado político Enéas Carneiro, o maloqueiro e indisciplinado futebolista Romário e o provinciano cantor Falcão foram aceitos. Então por qual motivo o Mingau Ácido não pode ser aceito também? “Bem vindo ao time, Mingau”, bradou, com um timbre de voz contagiante (pelo menos na minha imaginação, já que foi por e-mail), o radiante Marreco Bill. Fiquei muito feliz e grato, e ainda estou. Mas se pensar que os que têm filhos e muito a perder, reuniram-se por skype, deliberaram e chegaram à conclusão ser o meu glossário de verborragias ácidos demais, até mesmo para os padrões de um blog que usa coturno e jaqueta de couro rota, por pouco não fiquei de fora da turminha de moicano (dos anos oitenta e não da era Neymar), eu faço realmente jus à minha sensação de ser muito playboy ao lado dos punks e muito punk ao lado dos playboys. É por isso que eis aqui o homem-fezes! Prazer. Eu poderia estar roubando, poderia estar matando ou poderia estar comendo a sua mulher, mas não, eu estou aqui, escrevendo, honestamente, com meu palavreado nauseabundo, as minhas crônicas ácidas para, depois, passar por baixo de uma catraca de ônibus e vendê-las a preço de banana para comprar feijão, ou disponibilizá-las, gratuitamente, em um sítio virtual, para ganhar brisa na alma. Não tenho um cachorro tatuado no braço e não mato nem uma maldita mosca varejeira (tão coloridinha, tão bonitinha), mas caio em contradição como qualquer ser humano porque sem esse note book eu sou apenas um frágil animalzinho medroso perdido na selva de pedra paulistana. Então, para me proteger, também uso minhas máscaras, por mais burramente escolhidas que sejam. E como eu não estou acima do bem e do mal e não poderia ser hipócrita (o suficiente) par a me deixar imune à minha própria ironia contraditória, quem sabe não seja eu o psicopata? Mas eu sou muito intenso e calorosamente desinteligente para chegar ao ponto de conseguir a proeza de tirar a vida de um semelhante dessemelhante. E também eu preciso muito que gostem de mim, preciso ser bonzinho. Ser psicopata, seria me auto-promover. Eu sou apenas o homem-fezes. E para me consolar, alguém grita da platéia: “Ei, Fezes! Não fique triste. Os outros dejetos aceitarão você como um deles”. E quando eu estou pronto para chorar de emoção, comovido com a esperança que me fora concedida por alguém do público, o locutor do circo de aberrações cortou o meu barato: “Não. Os outros dejetos não aceitam Fezes como um deles. Os outros dejetos acham Fezes muito fresco”.

Mingau Ácido (Marcelo Garbine)
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Ilustração de Nanci Penna

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