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O limiar da compreensão que veio com o hálito
– O sol que aquece o ar e faz com que suba e resfrie-se, culminando nesta fresca brisa que cá em minha face sopra, perfaz o ponto ideal de climatização para que beijos seus deturpem a temperatura que ora fora estabilizada pelas forças motrizes da natureza. Equilíbrio e desequilíbrio esses que se alternam e concebem têmpera em minha pele sedenta por seus toques, tornam febril minhas entranhas que a bafagem amenizara. E de nada valeria a paz proporcionada pelo frescor da essência, se suas mãos escusassem-se do alívio a mim proporcionado de não me quedar abandonado aos caprichos do que vem do acaso da intempérie.

Mal terminei de pronunciar palavras que do meu âmago saíram e a minha amada arregalou os seus olhinhos ilógicos: tão costumários por serem castanhos, tão divergentes por sua carga de sentimentos que jamais existira e jamais existirá outro semelhante na linha espaço-tempo...

Falava eu sério? Sim. Mas a dubiedade sempre sobre ela recaía... A ventosidade que não era a aura a qual me referia, em verdade, provinha de meu íntimo, que não era nem o meu coração e nem a minha alma, eram as minhas vísceras no sentido mais vil possível da denotação. A ventosidade era distinta da aragem que reavivava o álamo: era o manifesto das vozes obscuras de um intestino que absorvera o banquete romântico, à luz de velas, da noite anterior.

– Você me diverte ao mesmo tempo que me enaltece, meu amor. As horas, então, passam leves quando estou ao seu lado, mas confesso que me confunde um pouco...

– São as impenetrabilidades do afeto, deusa minha. E que medida teria minha afeição por você se essa não fosse ladeada pela tríade que compõe o aconchego da convivência de um casal enamorado por toda uma vida? Sentimentos originados da autenticidade não são ensaios vislumbrados por um pernoite casual.

– E que tríade vem a ser essa, meu poeta?

– As coxas de outras moças, o ronco noctâmbulo e a flatulência.

– E o momento único do encanto da poesia?

– Ele existe, mas não é cerceado pelos disparos advindos dos corpos que se entrelaçam, desejando-se e consumando-se. O exercício das ações genuínas não é abjeto.

– É rígida a ressonância da voz de minha mãe em minha mente, incutindo em mim o que são os padrões da rotina de vida de uma princesa. As estórias de contos de fadas são vívidas e falam alto porque foram bem calcadas na estampa da formação do meu caráter.

– Talvez seja essa a bifurcação forjada entre sonho e realidade que enterrou a semente da discórdia que germinou e permeou os devaneios por dois arrebatados. O pudor dos irmãos Grimm venerou a obstipação intestinal. Altezas da corte, em suas páginas, eram desautorizadas a implementar as funções mais básicas de suas composições genéticas, como se o odor das rosas que exalam das linhas de uma trova competissem com o aroma nascedouro no núcleo do abdômen do príncipe. Tamanha crueldade acometida contra os moços apaixonados que eram obrigados a omitir suas características humanas elementares e somente a revelarem após o matrimônio suplantou a felicidade radiante que pairaria sobre os longos anos da comunhão, espezinhando peitos pulsantes e rotulando injustamente o galã de mal educado. Fenômeno que levaram pequenas a amarem mais os pôsteres de seus ídolos colados nas paredes do dormitório conjugal do que o homem que ao seu lado dorme e provê o sustento das crias.

– Se tão somente congênita e inocente é a fragrância do bendito ventre, por qual motivo expressara fisionomia deveras avexada no primeiro almoço com minha família, quando nem culpado foste pelo turbilhão avassalador que transpassou a sala da minha casa, meu adorado?

– Sabendo eu das complicações derivadas da timidez manufaturada em sua severa infância, fruto da ferrenha disciplina ditada por seus genitores, vi por bem, como bom cavalheiro que sou, assumir a responsabilidade pelo esparramo e livrar minha donzela de admoestações moralistas, mesmo correndo o risco de rebaixar-me no conceito de seus reacionários entes queridos.

Os olhos castanhos de minha dulcineia vermelheceram-se. Uma lágrima deslizou ziguezagueando o seu rostinho alvo enrubescido. Seus ouvidos castos nunca haviam sido banhados por dizeres mais belos. Seus braços largos entrelaçaram o meu pescoço e seus lábios desgrudaram-se, enquanto a vermelhidão de seus olhos eram ocultadas por suas pálpebras. Sua fronte iniciou a busca lenta pela minha. Mas, numa interrupção brusca, ela apôs sutilmente sua mão sobre minha boca. Tive a impressão que, antes de perpetrar o ósculo, pretendia falar-me algo... mas, não, ela apenas levantou o dedo indicador, apontando-o para as ensolaradas nuvens daquele céu azul primaveril, tirou o seu pezinho do chão e lançou o seu charmoso quadril para o seu lado esquerdo, mirando fixamente as minhas retinas e fez emanar o bálsamo oriundo da atmosfera dos seus recônditos mais secretos.

Desvendada a gênese das desavenças, pronto estávamos para o êxito nupcial.

Mingau Ácido (Marcelo Garbine)

Texto publicado na Revista Cultura no Mundo – Quarta Edição – fevereiro de 2015 – Páginas 36 e 37.

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Ilustração de Marcilane Santos

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