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Filosofias afrodisíacas para convencer mulheres
Naquela noite de sábado, no sarau, fui convidado a declamar a minha poesia. Foi muito bom. Tudo o que saiu de dentro de mim, enquanto estava lançado no canto poeirento do quarto, pensando estar sozinho no mundo, ia ao encontro do sentimento de tanta gente. Pensamos que somos únicos e, de certo modo, somos mesmo, até certo ponto, mas é assustador quando descobrimos que sentimentos tão íntimos são comuns ao animal humano. Por um lado, é agradável porque nos sentimos mais compreendidos e menos sozinho, entretanto, por outro, é péssimo porque perdemos aquela sensação de individualidade, da qual sentimos um orgulho besta que achamos ser o elemento diferenciador dos demais pares. Não é o ser humano que não sabe o que quer, são os sentimentos que são ambíguos demais. Ao mesmo tempo em que é tolice querer que o Universo funcione conforme as nossas próprias regras, as adversidades também não precisavam pegar tão pesado, não é Senhor Criador? Esse é o preço caro que se paga por ter um cérebro pensante e a dificuldade que se tem de encontrar pessoas inteligentes para compartilhá-lo. Surge, então, a necessidade de, como na física, adotar-se referenciais, sendo que adotá-los significa conformar-se com a imperfeição, pois ao se basear em certos parâmetros, deixa-se de lado elementos primorosos que compõem a essência do que somos e do que dá sentido para tudo. Temos a necessidade de ser diferente, mas nos sentimos perdidos quando parece que conseguimos alcançar esse intento. Um meio termo seria ser dessemelhante, “pero no mucho”: parelho a uma minoria e díspar da minoria.

Após a última estrofe recitada vieram os aplausos. Vaidade? Claro. Se não fosse pela vaidade, não teria composto essa bosta, teria tomado cerveja mesmo. Que, aliás, é o que eu faço agora. Agora eu posso. Se eu tomasse antes, seria um relés mortal dado ao vício, mas agora eu sou um poeta aclamado e poetas aclamados podem alterar a consciência sem vulgaridade.

– Eu gostei da sua poesia.

Olhei-a de cima a baixo. Nada mal.

– Fico feliz que tenha gostado. Temia que não gostassem por não compreenderem que a personagem era o meu alter ego feminino e, muito menos, qual era o intuito da alusão à Dante Alighieri.

– Quem?

– (…)

Bem… via-se que eu estava começando a ficar chato e – digo mais – estava exigindo muito da minha interlocutora. Era uma mulher bonita, não era? Então cala-te boca. Dê-se por satisfeito. Que mania é essa de querer exigir que as mulheres bonitas sejam inteligentes também? Tem que ser o kit completo? Vai caçar sapo você também, senhor Mingau Ácido.

– Eu leio as suas poesias faz tempo, Mingau. Não imaginei que o veria em um sarau literário.

– Eu me refugio nos saraus quando o bicho pega. As relações sentimentais são complicadas.

– Ah, eu sei, você terminou o seu namoro.

– Por que todo mundo tem que saber da minha vida? 

– Não sei. Talvez porque você escancare a sua intimidade escrevendo as suas crônicas em primeira pessoa, seria isso?

Acho que eu prejulguei mal a moça. Ela não era tão burra assim. E sabia provocar com ironias.

– Você não vai perguntar o meu nome.

– Acho que não. Não quero estragar o momento. De repente o seu nome é Aparecida, Elza, Dolores ou qualquer coisa dessas anti-tesão.

– Não, pode ficar tranquilo. Tenho um nome comum, do tipo Rafaela, Patrícia, Viviane… coisa assim.

– Mesmo assim não seria bom. Depois de oito latinhas, eu preferiria que o seu nome fosse Tíffany, Natasha, Mel… algo dessa linha.

– Meu nome é Anne Gabrielle.

– Com dois enes e dois eles?

– Sim.

– Oba, esse é bom: nome duplo, ambos com letras duplicadas e terminando forçosamente com os excêntricos “Es” ao invés dos consuetudinários “As”. Perfeito.

– Você tá pensando que é fácil desse jeito?

– Tô.

– Podemos conversar lá no jardim...

Dei-me bem. Eu mereço. Mingau também é filho de Deus.

– Então, Mingau, você é amigo daquela ali de azul que declamou a poesia antes de você?

– Sou. Por quê?

– Apresenta ela pra mim?

– Mas…

– É. Eu gosto de meninas.

– Ah, sei lá. Agora há pouco eu estava meio triste porque não achava ninguém inteligente pra conversar. Acabei chegando à conclusão que poderia tapar esse buraco existencial com algo mundano como o básico instinto e…

– Vai chorar?

– Não chegarei a tanto, mas eu declamei uma poesia que tive que arrancar do fundo da minha alma e estava quieto no meu canto tomando cerveja, reflexivo, filosófico e você interrompeu os meus devaneios, tirou-me de dentro de mim. Eu não costumo distrair-me com superficialidades externas, mas achei que seria uma boa para não me perder tanto no mundo abstrato.

– Você quer que eu dê pra você por pena, é isso?

– Hoje eu não estou muito exigente. Eu já divago demais. Preciso exercitar a concentração no ato em si e não no que ele significa. Eu ia voltar pra casa e dormir mesmo.

– Você já me proporcionou várias horas de diversão literária. Odeio a ingratidão.

– Segundo Jean de La Bruyère, “não há no mundo exagero mais belo que a gratidão”.

– Você está usando uma frase de um moralista para pedir-me uma coisa imoral dessa?

– É dialética.

– Mingau, isso não está certo.

– Vai te catar, sua “caga-regras”.

– Agora sim você me convenceu. Odeio ser “caga-regras”. Fica mais atrás da árvore, então.

– Não importa os meios, chegou-se ao fim de alguma forma. O Universo atende-nos das formas mais inusitadas.

– Você pode parar de ser chato pelo menos quinze minutos? Já não é a minha praia e esse jardim está cheio de pedras pontiagudas. É horrível de ajoelhar-se. Ficaria um pouco mais grata a você se colaborasse comigo.

– Está bem. Eu me esforço.

– Meu cabelo está solto, fica caindo no meu rosto.

– Eu seguro o seu cabelo.

– Como você é gentil…

Mingau Ácido (Marcelo Garbine)

A versão em áudio deste texto – transmitida pela Rádio WRA de Santo André – SP – e pela Rádio Além Fronteiras de Portugal – pode ser ouvida na subseção Crônicas para Rádio da Seção Rádios deste site.

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Ilustração de Nanci Penna

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