Como comer a garçonete de um bistrô
– Um Skibon.
– Ballantines ou Jack Daniels?
– Eu disse: um Skibon, um sorvete Skibon, e não whisky bom.
– Ah, tá, é que você tem jeito de um bom apreciador de whisky. E é difícil alguém se sentar à mesa de um bistrô, como o nosso, pra pedir um sorvete.
– Tem no cardápio, não tem?
– Tem, mas, geralmente, vendemos, como sobremesa, para os filhos dos casais, que são nossos clientes, e não para um trintão desacompanhado. Um homem, com o perfil como o seu, está mais para apreciador de um bom whisky.
– Temos quatro alternativas, então: eu posso continuar, aqui, sentado, com cara de palhaço, ouvindo uma garçonete metida à analista de perfil de consumidor, posso levantar e ir embora desse restaurante maluco, posso mudar o meu pedido para evitar chocá-la com estranhezas ou posso pedir que pare de encher o meu saco e traga logo essa porcaria desse sorvete.
– Ahahahaha… a vida é bela, moço. Na verdade, eu sou consultora de imagens. Vou trabalhar, como garçonete, nesse bistrô, durante duas semanas, só para fazer um laboratório, analisando o perfil dos clientes que entram aqui. Achei o seu muito curioso, tão bem apessoado e tão mal humorado, por isso estou alongando a conversa. Quero abstrair o máximo que puder de você.
– Interessante… mas, hoje, eu não estou com paciência. Acabei de romper um relacionamento.
– Acabou de romper um relacionamento? Tem certeza que não quer o Whisky?
– Só se eu tivesse interesse em levá-la para um motel. Aí iria precisar de, no mínimo, umas três ou quatro doses na minha cabeça, para fazer valer o ditado “não existe mulher feia, é você que não bebeu demais”.
– Ah, vá… até que eu sou bonitinha. Sabia que a rejeição de um homem, assim, tão explícita, é afrodisíaca?
– Você não vai gostar de mim. Esquece.
– Como você sabe do que eu não gosto?
– Eu tenho um dente cariado, olha.
– Eca! Mas se você não me mostrar mais, eu vou esquecer a existência dele.
– Mas não vai esquecer os meus pneuzinhos, olha a minha barriga.
– É… como consultora de imagens eu lhe digo que você precisar correr, urgentemente, para uma academia, mas, como mulher, eu não ligo para isso não. Eu gosto de homens inteligentes e você é inteligente.
– E o que adianta ser inteligente e ter herpes genital?
– Huuuum… por mais que eu esteja a fim, nesse caso, vai ser mais difícil de apelar para o meu senso de benevolência e conseguir relevar… Mudando de assunto: o que você faz?
– Eu sou escritor.
– Que legal! Então está explicado o notebook ligado, sobre a mesa, com um documento de Word aberto. Qual é o próximo assunto sobre o qual vai escrever?
– Tendo em vista o teor do nosso diálogo, sobre você.
– Como você é contraditório… Sabe aproveitar tão bem a oportunidade de uma boa deixa para escrever e não aproveita a oportunidade de trocar um sorvete por sexo?
– Nem a analista de imagens vai conseguir obter uma razoável compreensão de mim, pelo jeito.
– É… confesso que, pessoalmente, estou interessada em você porque está me intrigando, mas, profissionalmente, estou me sentindo uma incompetente. É a primeira vez que não consigo compreender um perfil. Aliás, é a segunda porque, quando eu estava na sétima série, havia um menino esquisitão também. Falando com você, lembrei-me dele… o Marcelo.
– Até o nome é igual ao meu.
– Sério? Quantos anos você tem?
– Trinta e sete.
– Eu também.
– Onde você estudou?
– Lá no (…)
– Eu também… Priscila?
– Não fui eu quem contou para a professora de matemática que você estava colando na prova, foi o Rogério.
– E você acha mesmo que eu quero explicação sobre isso, vinte e cinco anos depois?
– É que você parecia ser tão sistemático, achei que gostasse de tudo certinho, de esmiuçar tudo, ter explicação sobre tudo.
– Obrigado pelo sistemático. O seu eufemismo aliviou bastante o termo pejorativo que você usava para definir-me.
– Ah, eu sei… eu chamava você de chato. Mas o Rogério que era um insuportável, ficava dedando todo mundo, não tinha o menor senso de coleguismo.
– Bom… quem sou eu pra falar alguma coisa? Acho que não tenho moral pra chamar ninguém de insuportável.
– Mas você era um chato engraçado, o Rogério, não.
– É… faz sentido, pelo menos eu era engraçado. Mas por que você namorava o Rogério, então?
– Eu não o namorava. Só pedi pra fingir que era namorada dele pra você sair do meu pé.
– Puxa, como o mundo dá voltas. Agora, vinte e cinco anos mais tarde, você está quase implorando pra dar pra mim.
– Acho que, agora, você não vai querer mesmo, não é?
– Eu não guardo mágoa.
– Como consegue não guardar mágoa?
– Tenho que fazer esse esforço. Se quero escrever textos bem humorados, tenho que eliminar, pelo menos, uns setenta por cento da minha mágoa, mas preservar trinta para dar a dose certa de acidez.
– Então você só está trinta por cento magoado comigo?
– Pode-se dizer que sim.
– Não vai querer me esnobar para se vingar?
– Já fiz isso, com os trinta por cento da minha acidez, agora, preciso dar voz aos outros setenta por cento e vingar-me de um quarto de século de espera.
– Na minha casa ou na sua?
– Podemos levar uma garrafa de um bom whisky?
Mingau Ácido (Marcelo Garbine)
Texto publicado na Revista Literária da Lusofonia – Décima Quinta Edição – agosto/setembro de 2015 – Páginas 86 e 87.
A versão em áudio deste texto – transmitida pela Rádio WRA de Santo André – SP – pode ser ouvida na subseção Crônicas para Rádio da Seção Rádios deste site.
Veículos de mídia impressa ou eletrônica interessados em publicar este texto podem entrar em contato.
– Ballantines ou Jack Daniels?
– Eu disse: um Skibon, um sorvete Skibon, e não whisky bom.
– Ah, tá, é que você tem jeito de um bom apreciador de whisky. E é difícil alguém se sentar à mesa de um bistrô, como o nosso, pra pedir um sorvete.
– Tem no cardápio, não tem?
– Tem, mas, geralmente, vendemos, como sobremesa, para os filhos dos casais, que são nossos clientes, e não para um trintão desacompanhado. Um homem, com o perfil como o seu, está mais para apreciador de um bom whisky.
– Temos quatro alternativas, então: eu posso continuar, aqui, sentado, com cara de palhaço, ouvindo uma garçonete metida à analista de perfil de consumidor, posso levantar e ir embora desse restaurante maluco, posso mudar o meu pedido para evitar chocá-la com estranhezas ou posso pedir que pare de encher o meu saco e traga logo essa porcaria desse sorvete.
– Ahahahaha… a vida é bela, moço. Na verdade, eu sou consultora de imagens. Vou trabalhar, como garçonete, nesse bistrô, durante duas semanas, só para fazer um laboratório, analisando o perfil dos clientes que entram aqui. Achei o seu muito curioso, tão bem apessoado e tão mal humorado, por isso estou alongando a conversa. Quero abstrair o máximo que puder de você.
– Interessante… mas, hoje, eu não estou com paciência. Acabei de romper um relacionamento.
– Acabou de romper um relacionamento? Tem certeza que não quer o Whisky?
– Só se eu tivesse interesse em levá-la para um motel. Aí iria precisar de, no mínimo, umas três ou quatro doses na minha cabeça, para fazer valer o ditado “não existe mulher feia, é você que não bebeu demais”.
– Ah, vá… até que eu sou bonitinha. Sabia que a rejeição de um homem, assim, tão explícita, é afrodisíaca?
– Você não vai gostar de mim. Esquece.
– Como você sabe do que eu não gosto?
– Eu tenho um dente cariado, olha.
– Eca! Mas se você não me mostrar mais, eu vou esquecer a existência dele.
– Mas não vai esquecer os meus pneuzinhos, olha a minha barriga.
– É… como consultora de imagens eu lhe digo que você precisar correr, urgentemente, para uma academia, mas, como mulher, eu não ligo para isso não. Eu gosto de homens inteligentes e você é inteligente.
– E o que adianta ser inteligente e ter herpes genital?
– Huuuum… por mais que eu esteja a fim, nesse caso, vai ser mais difícil de apelar para o meu senso de benevolência e conseguir relevar… Mudando de assunto: o que você faz?
– Eu sou escritor.
– Que legal! Então está explicado o notebook ligado, sobre a mesa, com um documento de Word aberto. Qual é o próximo assunto sobre o qual vai escrever?
– Tendo em vista o teor do nosso diálogo, sobre você.
– Como você é contraditório… Sabe aproveitar tão bem a oportunidade de uma boa deixa para escrever e não aproveita a oportunidade de trocar um sorvete por sexo?
– Nem a analista de imagens vai conseguir obter uma razoável compreensão de mim, pelo jeito.
– É… confesso que, pessoalmente, estou interessada em você porque está me intrigando, mas, profissionalmente, estou me sentindo uma incompetente. É a primeira vez que não consigo compreender um perfil. Aliás, é a segunda porque, quando eu estava na sétima série, havia um menino esquisitão também. Falando com você, lembrei-me dele… o Marcelo.
– Até o nome é igual ao meu.
– Sério? Quantos anos você tem?
– Trinta e sete.
– Eu também.
– Onde você estudou?
– Lá no (…)
– Eu também… Priscila?
– Não fui eu quem contou para a professora de matemática que você estava colando na prova, foi o Rogério.
– E você acha mesmo que eu quero explicação sobre isso, vinte e cinco anos depois?
– É que você parecia ser tão sistemático, achei que gostasse de tudo certinho, de esmiuçar tudo, ter explicação sobre tudo.
– Obrigado pelo sistemático. O seu eufemismo aliviou bastante o termo pejorativo que você usava para definir-me.
– Ah, eu sei… eu chamava você de chato. Mas o Rogério que era um insuportável, ficava dedando todo mundo, não tinha o menor senso de coleguismo.
– Bom… quem sou eu pra falar alguma coisa? Acho que não tenho moral pra chamar ninguém de insuportável.
– Mas você era um chato engraçado, o Rogério, não.
– É… faz sentido, pelo menos eu era engraçado. Mas por que você namorava o Rogério, então?
– Eu não o namorava. Só pedi pra fingir que era namorada dele pra você sair do meu pé.
– Puxa, como o mundo dá voltas. Agora, vinte e cinco anos mais tarde, você está quase implorando pra dar pra mim.
– Acho que, agora, você não vai querer mesmo, não é?
– Eu não guardo mágoa.
– Como consegue não guardar mágoa?
– Tenho que fazer esse esforço. Se quero escrever textos bem humorados, tenho que eliminar, pelo menos, uns setenta por cento da minha mágoa, mas preservar trinta para dar a dose certa de acidez.
– Então você só está trinta por cento magoado comigo?
– Pode-se dizer que sim.
– Não vai querer me esnobar para se vingar?
– Já fiz isso, com os trinta por cento da minha acidez, agora, preciso dar voz aos outros setenta por cento e vingar-me de um quarto de século de espera.
– Na minha casa ou na sua?
– Podemos levar uma garrafa de um bom whisky?
Mingau Ácido (Marcelo Garbine)
Texto publicado na Revista Literária da Lusofonia – Décima Quinta Edição – agosto/setembro de 2015 – Páginas 86 e 87.
A versão em áudio deste texto – transmitida pela Rádio WRA de Santo André – SP – pode ser ouvida na subseção Crônicas para Rádio da Seção Rádios deste site.
Veículos de mídia impressa ou eletrônica interessados em publicar este texto podem entrar em contato.
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