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No alto do rochedo, eu me esvaí com o vento
Vinte e um de dezembro de dois mil e doze. Em algum lugar de um universo paralelo, o mundo acabou. Tenho apenas uma mochila pra colocar nas costas e sair atrás de um local habitável. Quais pertences meus levarei?

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Nenhuma Coca-Cola na geladeira? Nenhum cigarro em cima da escrivaninha? Isto é realmente o fim do mundo, no sentido figurado e no sentido literal.

Já que não tenho estes principais itens pra botar na minha velha bolsa, lembro-me que nela não pode faltar o macaquinho Chico, meu brinquedo preferido de infância, que ganhei quando tinha três aninhos.

Encardido e com um nó cego no rabo, que nunca mais consegui desatar, ele foi o meu companheirinho de todas as horas. Foi ele quem me consolou nos instantes mais difíceis da adolescência, quando namoros foram terminados e paixões, perdidas.

O Sylvinho tinha o ursinho Blau Blau de brinquedo dele e eu tenho o meu macaquinho Chico.

Comida e água, posso achar pelo caminho, mas, outro macaquinho Chico, não reaverei jamais.

Se o Chico não me negou apoio nestes meus trinta e seis anos de vida, não será, hoje, no fim do mundo, que me abandonará.

Que venha o fim do mundo, porém, com o Chico abraçado comigo.

Não desejo procurar um oásis e nem sobreviventes. Espero somente recitar as minhas últimas poesias ao vento e recordar-me dos bons momentos que vivi por aqui. Valeu pelo tempo que durou.

A vida seria breve de qualquer forma... O que há de ruim em ter sido encurtada um pouco mais?

Levo, além disto, um papel e uma caneta pra escrever o que vier à cabeça. Os sobreviventes – se existirem – poderão lê-las.

Transcorrida a nova idade das trevas, da busca por alimento e sexo imediatos, decerto, interessar-se-ão por prazeres mais aprimorados.

A mãe natureza, é claro, despertará neles a esganada demanda pelo básico instinto. É um truque dela pra compelir a espécie humana a procriar e povoar o planeta novamente. Entretanto, após esta fase tão animalesca, o que se restará a fazer?

Os seres humanos não têm apetite só por comida, como cantaram os Titãs, na década de oitenta. A fome é por comida, diversão e arte.

Quiçá, seja este um dos motivos da ruína do Império Vermelho, que acalentou as expectativas por justiça, durante o século XX, quase de ponta à ponta.

Mas, o foco pegou muito fundo nas necessidades básicas do homem... básicas demais. Tão básicas que não satisfizeram o básico a ponto de deixá-lo infeliz e insatisfeito com o Sistema da Esperança.

Nas linhas sisudas do jornal do Partido, não havia um único artigo de humor ou, sequer, um espacinho pra que se narrasse um drama discorrendo acerca da angústia crônica da essência de todos nós.

Devia-se ser feroz. Fazia-se mister a demonstração de superioridade sobre os países que preconizavam a economia de mercado. E não há nada mais primitivo que exibir força bruta.

Sabemos que é balela. E, como diz Maria Rita: “Ele não é de nada. Essa cara amarrada é só um jeito de viver na pior”. Ninguém cai nessa, não. Ninguém é forte.

Usamos máscaras, todavia, na hipótese de tirarmos este traje pesado, composto por várias camadas de armaduras de aço, fica só o nosso espírito nu e friorento, com olhinhos de gatinho assustado, no meio do asfalto, implorando, desesperadamente, por colo e afago.

Aqueles desfiles de soldados e mísseis só enganavam quem queria ser enganado. Em seguida, descobriu-se que muitos dos projéteis eram ocos, simples adornos de carnaval pra meter medo no imperador da outra facção do globo terrestre. E, ainda que não fossem, a mim, não tapeiam mais. Já quis ser ludibriado o bastante...

URSS e USA eram dois bêbados, no boteco, gritando pra ver quem era mais macho. Precisava-se de uma mentira pra ter razão pra viver.

Um dia, tomei uma atitude de homem e deixei de ter falsas certezas. E, como todas as convicções são ilusórias, não tenho mais convencimento algum.

Como bem fala Humberto Gessinger: “A dúvida é o preço da pureza e é inútil ter certeza”.

O mundo acabou. E agora, Chico? O sonho acabou, o homem da casa, que foi comprar pão, da padaria não voltou; o leiteiro não deixou o leite na janela, nesta manhã. E agora, Chico?

Nem o meu livro do Carlos Drummond de Andrade encontrei pra junto comigo trazer. Também me esqueci de dois DVDs: "O Pianista", de Roman Polanski e "A Vida é Bela", de Roberto Benigni. Seria legal assistir-lhes pela última vez. Eu só tenho você, Chico. E, agora, tudo se esvai.

Oportuno seria, eventualmente, simular um tipinho sarcástico. Eu poderia, de maneira efetiva, esboçar um sorrisinho cínico, de canto de lábio, e sussurrar pra mim próprio: “Bem feito! A humanidade mereceu!”.

Contudo, se assim o fizesse, só estaria agradando uns dez por cento da minha egolatria. A ínfima fração de mim saciada seria aquela tão desprezível quanto o lado obscuro dos indivíduos que mereceram a morte. Mas a esmagadora maior parcela da minha personalidade quedaria descontente.

A Lei do Talião não mata a sede de ninguém. A expressão “prato que se come frio” é um grande esforço fracassado de tentar atribuir significado a uma degustação insípida. Em verdade, a vingança é um prato que se coze, aquece-se, prepara-se, põe-se à mesa... e não se come. Não há o que se comer.

Provérbio romeno: "Aquele que almeja a vingança é como a mosca que bate no vidro da janela sem ver que a porta está aberta”.

E eu sempre acreditei na humanidade. De modo incessante, cri que o homem superaria o seu ciclo pré-histórico da lucidez.

Enxergar exclusive a perversão das pessoas é enfatizar o nosso fragmento podre também. Vemos os outros como somos. Cada um escuta o que quer e vê o que quer. Somos seletivos.

Óbvio que muita gente boa estava morrendo com o fim do mundo. Está tudo deveras distante de um sonho realizado. E quanto à minha décima parte, que, quando vai ao circo, torce pro trapezista cair do trapézio – o mesmo que, nesta ocasião, teima em comemorar o fim do mundo, desafiando a minha reprovação – por eles, rogo clemência, vociferando as palavras de Jesus Cristo ao pai, no ato da crucificação.

Uma nova sociedade nascerá e escavar-se-ão escombros. Milênios decorrerão e por-se-á em dúvida se o fim do mundo do século XXI depois de Cristo existiu de fato. Somos os Noés contemporâneos.

E se fosse possível acordar de um pesadelo? E se fosse possível perceber que tudo não passou de um delírio? Faríamos tudo diferente? Não, faríamos tudo igualzinho.

Enquanto as consequências não ardem – materialmente – na carne, enquanto só existe uma vaga advertência e uma mera promessa de dor, a encabrestada raça humana não progride nem a pau. É obrigatório estalar o chicote no lombo desse animal teimoso chamado homem.

Embora as chibatadas sejam sutis metáforas pra relatar algo tão sério como o fim do mundo, é exigido que se atinja este nível do sofrimento pra que o vagaroso humano seja empurrado pra evolução.

O homem necessita padecer de câncer, deve ter dores insuportáveis e seus cabelos devem cair. A humanidade carece disto.

Chegou a hora. Calhou de ser na nossa geração. Logo a nossa... tão mal acostumada.

O sofá estava tão confortável, a pipoca quebrantava na boca e o wi-fi permitia que brincássemos de ser Deus.

O Onicriador gosta de ironia. Talvez seja por isto que Ele me tenha poupado.

A zombaria não é má. Caso não sejam vítimas dela, os homens continuam errando, pois não há dor maior do que cair no ridículo, do que se olhar no espelho. O escárnio tem o poder de arrancar a nossa couraça. Isto porque é líquido e certo que só há vaidade sob o sol. E o deboche é a arma mais eficaz contra o pecado capital dos pecados capitais.

Aí está o equívoco de pensar que Deus é cruel. Ele não é bom e nem é mau, Ele é Deus. Faz o que deve ser feito. Quem tem o poder de ser bom ou mau somos nós. É uma questão de escolha. E o fluxo de opções inatas é apenas costume. Criemos o hábito, pois.

E, no alto deste rochedo, que elegi pra morar nesta temporada de matança, a brisa sopra suave na minha face.

O único ser vivo ao meu lado sou exatamente eu quem anima. Qualquer interferência vinda de outros cérebros e corações seria voraz demais pra fragilidade das minhas reflexões de cristal. Só que o universo não foi construído pra isto. O mundo não foi edificado pro deleite. Pelo menos, não com este fim.

Uma mão que toca levemente o meu ombro, meu pescoço que gira noventa graus, meus olhos que se deparam com um semblante desconhecido...

Marcelo Garbine

A versão em áudio deste texto – transmitida pela Rádio WRA de Santo André – SP – pode ser ouvida na subseção Crônicas para Rádio da Seção Rádios deste site com o título "O fim do mundo".

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  • jota Caballero Reflexões abissais
    Enviado em 24/01/2015 às 18:22
  • Jocimar LinharesClap... clap...clap belíssimo e instintivo texto caro Mingal.
    Enviado em 04/01/2015 às 12:08